segunda-feira, 23 de maio de 2011

MALHADO, ESTE VOCÊ PODE CONFIAR

Em toda a rua de subúrbio, não tenho a certeza de todas porque não saí para contar, mas creio que em boa parte, há uma calçada estreita, carros antigos estacionados, casas com janelas pequenas e um cachorro, ou uma cachorrada latindo ou correndo atrás de alguma cadela no cio. Naquela rua onde morei, cresci, briguei, namorei, casei, tive meus filhos e de lá parti para outras paragens havia uma casa rosa. Amplas janelas denunciavam que ali moravam pessoas muito especiais. Uma delas era a dona Geni. Viúva de um policial civil, ex-delegado do bairro, dona Geni criou seus filhos – duas mulheres e um homem e hoje prepara deliciosos doces para esperar os seus quatro netos. Todo o domingo é assim. Aquela casa rosa, naquela rua de Ramos, no Rio de Janeiro, ganha um brilho ainda mais especial. O aroma frugal e doce que sai das panelinhas da cozinha de Dona Geni são os mais sensacionais. São sabores incríveis e também os mais apaixonantes. Porque a dona Geni é apaixonada por seus netos. Ela ama a vida. Dona Geni conta com duas proteções de peso: Jesus Cristo e o seu inseparável e fiel escudeiro: o Malhado.

É um cachorro digamos... nobre, único em sua espécie. Não que pertença a raça dos malhadus grandis peludis não, porque esta raça não existe. Malhado é um velho vira lata, branco, com manchas marrons no pelo e com um enorme rabo. Quando o rabo do Malhado balança, prepare-se: pode ser um gesto de carinho ou então um rompante de proteção a sua idosa e amada dona. Malhado não cuida só da casa de Dona Geni. Tem livre acesso ao pátio e ao corredor de casas de uma senhora também muito especial.
Dona Rosinha é vizinha de dona Geni. Também viúva, mora em uma casa ampla, com janelas azuis e parede branca. A casa de dona Rosinha é a primeira da pequena vila de casas onde fica situada. São inquilinos da dona Rosinha, o barbeiro Horácio, um senhor sexagenário, cearense, que mora com a costureira Raimunda. Raimunda tem as mãos de ouro. A primeira calça de linho feita por ela... a gente nunca esquece. Maria do Carmo, diarista, também mora num pequeno cômodo, com o bêbado e chato marido, o desempregado Osvaldo. O Osvaldo, este é uma “mala sem alça”. Quando não está bêbado, está de mau humor. Nem o mais belo dia de sol do Rio de Janeiro consegue fazer com que ele dê um sorriso. Acho que nem no dia em que seu filho, Pedro, nasceu, este homem não deu sorriso algum. Haja purgante e reza braba pra curar a chatice do Osvaldo. Maria do Carmo é mulher de fé. Não perde nenhum culto da Igreja Universal, principalmente as correntes. Ela tem uma fé inabalável. Fé que ajudou a curar Pedro de uma forte pneumonia quando criança. Pedro hoje é militar, é casado e não mora no Rio de Janeiro. Mora no Rio Grande do Sul. Maria do Carmo conta com o carinho de Geni, Rosinha e também dos vizinhos. Todos já disseram a ela para se separar de Osvaldo. Mas ela disse que o dia de ele sair de sua vida está chegando e que Deus fará a obra. Será? Acho que o caso de Osvaldo será difícil de resolver.

A semana passou. Choveu, fez calor, fez frio, deu praia, deu arrastão, deu ressaca. Assim é o Rio, acontece tudo ao mesmo tempo, principalmente no clima. Era domingo. O bairro ainda acordava. Simples, alegre, as ruas se enfeitavam, era um dia alegre no subúrbio. Era dia de pegar o trem na Leopoldina para comer churrasco na casa dos parentes, curtir um pagode no pé sujo da esquina, ver o jogo do Flamengo com amigos e, é claro, acompanhado de uma loira gelada. Na zona sul é bom, mas no subúrbio também é bom. Domingo no subúrbio é assim. Dona Geni acordou cedo, abriu a janela do quarto, olhou para o céu, viu o sol. Abriu a porta da cozinha e lá viu o Malhado, deitadinho, ainda acordando, pronto para mais um domingo de cuidados e de afagos pela vizinhança. O Malhado tinha até página de fãs no Orkut. O Malhado era conhecido por toda a rua. Era um cachorro amigo, um cão que protegia a todos. Acho que em sua morte, deveriam mudar o nome da rua. Batiza-la de Rua Malhado. Era o melhor nome que poderia se dar ao logradouro.

Dona Rosinha passou e chamou dona Geni no portão:

- Geni, vamos à igreja! Tá na hora, minha amiga!

Dona Geni, chega na janela e pede para Rosinha aguardar:

- Rosinha, estou dando comida para os pássaros e também o leite pro Malhado. Eu já vou com você. Me espere um pouquinho.

A amável Rosinha esperou e, sorrindo, deu um bom-dia para Maria do Carmo, que também saía de casa.

- Maria do Carmo, que cara é essa? Você não dormiu à noite?

Com os olhos marejados, a vizinha lhe respondeu:

- Não dona Geni. Osvaldo saiu ontem de casa e até agora não voltou. Tenho medo. Vou para o culto orar. Tenho medo que ele me mate.

Assustada, Rosinha lhe disse:

- Sangue de Jesus tem poder! Este louco não vai fazer isso. No mínimo ele foi para a Vila Mimosa e por lá se meteu com algum rabo-de-saia. Aliás, rabo não, com mulher sem saia mesmo. É um homem sem respeito. Larga este traste minha amiga!

Neste tempo, dona Geni chega e vê as duas conversando. Ela se aproxima e fala com Maria do Carmo:

- Minha querida Maria, o que houve? O que foi que o Osvaldo te fez? Dormiu fora de casa de novo?

Maria do Carmo confirma:

- Dormiu sim. Ele dormiu fora. Estou preocupada. Estou com medo que aconteça algo com ele e comigo também. É um homem muito doido. Está possuído pelo demônio.

Geni responde:

- Está possuído e perdido. Deixa este homem ir embora. Ele não te ama e também não te respeita. Você é uma mulher nova, bonita. Larga dele e vai pro Sul morar com o teu filho. Ele e a mulher dele são pessoas boas e vão te acolher na casa deles. Deixa este velho imundo ficar embaixo da ponte.

Com fé, Maria do Carmo sintetiza:

- Só Deus é que pode me separar deste homem. Também não o amo mais como marido. Mas eu não posso o largar. Só Jesus pode me salvar.

Conversando, as três amigas vão para a igreja. Maria do Carmo vai ao culto da Igreja Universal em Bonsucesso. É domingo de Santa Ceia. Geni e Rosinha vão até a igreja do bairro. Vão rezar para Santa Rita. Geni já deixou o doce de leite pronto e esfriando no tacho, deixou os legumes cortados e lavados para fazer um ensopado e também temperou, ainda no sábado à noite, o frango para servir com arroz e macarrão para a filha Alessandra, que vai lhe visitar com o Marido, Ricardo, e os netos, Thiago e Francisco. As crianças levam alegria a casa de dona Geni, e Malhado fica balançando o rabinho quando sabe que eles vão chegar.

A missa acabou e o culto também. Por coincidência, as três amigas se encontraram na parada de ônibus, próximo a rua onde moram. Ao voltarem juntas para as suas casas, ambas conversam:

- Maria do Carmo, será que Osvaldo já chegou em casa?

- Não sei dona Geni. Acho que sim. Deve estar deitado na cama, só de cuecas e bêbado, como sempre. Assim são os meus domingos, tristes, muito tristes.

- Menina, vá lá pra casa almoçar comigo. Hoje meus meninos não vão lá em casa me ver. Foram para Cabo Frio passar o final de semana com meu irmão que mora lá. Vou fazer um arroz com camarão. Vai almoçar comigo...

- Não sei dona Rosinha. Não posso deixar o Osvaldo sem comida não, disse Maria do Carmo.

Dona Geni entra em casa. Malhado, que está deitado no pátio, dá alguns latidos e balança o rabo. É sinal que algo aconteceu, ou vai acontecer. Dona Geni acarinha a cabeça do animal, abana para as amigas e entra em casa. Afinal, está quase na hora do almoço de domingo começar. Malhado sai da casa de dona Geni e acompanha dona Rosinha e Maria do Carmo até o pátio da morada. Dona Geni também acaricia a cabeça do animal e dá sorrisos. Maria do Carmo também gosta de Malhado. E brinca também com o cachorro. Malhado abre a boca, parece que está sorrindo e gostando da companhia de suas amigas. Ele balança o rabo e acompanha as duas.

Passado pouco mais do meio-dia, Alessandra e Ricardo chegam até a casa rosada de Dona Geni. São recebidos por Malhado, que late e pula no casal. Eles também saúdam o cachorro e as crianças já saem do Fiat Marea de Ricardo pulando e chamando pelo Malhado. Malhado brinca, joga bolinha com as crianças e assim vai o domingo. Um domingo de paz, um domingo de amor, um domingo de alegria. Alegria... até o final da tarde, quando uma grande confusão estoura no pátio de dona Geni.

Eram pouco mais de seis horas da tarde, quando uma gritaria veio do pátio de dona Rosinha. Nervosos, seu Horácio e dona Raimunda colocaram a cara para fora da porta. Da última casa da vila, vinham choros e gritos. Era algo fora do normal. Maria do Carmo gritava, pedia socorro, chorava e clamava a Jesus para salva-la. Eram copos quebrando, xícaras voando, coisas caindo no chão. Osvaldo berrava com a mulher. Eram gritos ilegíveis, misturados com palavrões. Parecia que o Diabo estava morando naquela casa. Dona Rosinha, assustada foi ao telefone e chamou a polícia. Enquanto a polícia não chegava, a vizinhança começava a se acumular na porta da casa da simpática moradora de Ramos. O futebol deu lugar àquela confusão. Era um fuzuê mesmo, com tudo o que tinha direito.

Alessandra ficou com as crianças em casa, para protege-las. Podia ser bala perdida, assalto, qualquer coisa. Afinal de contas, o Rio está violento sim. Ricardo saiu da casa e dona Geni, curiosa foi também para o meio da rua, tentar entender o que acontecia no pátio da casa da vizinha. Malhado arregalou os olhos, levantou as orelhas e abanou o rabo. Era hora de entrar em ação. O tumulto saiu do pátio e ganhou a calçada. Maria do Carmo saiu correndo de dentro do cômodo onde morava. E Osvaldo, com os olhos vermelhos e mais parecendo louco, sem camisa e de bermuda, com uma sacola numa das mãos, sai com uma faca em punho, para atacar a pobre e cristã Maria do Carmo. Envergonhada com aquele fisaco, Maria do Carmo sai correndo e vai em direção aos vizinhos. É um alvoroço só. Osvaldo, o louco, bêbado, e outras coisas piores, sai do pátio. Antes, olha para dona Rosinha, levanta a faca e diz:

- Eu vou voltar aqui. Vou acabar com a senhora, sua velha maldita. Antes, eu vou sangrar esta mulher. Vou sangrar e vou fugir. Polícia e ninguém vem atrás de mim. Se vir, eu me mato, eu corto os meus pulsos e vou culpar a vocês! Grita o enlouquecido Osvaldo.

Dona Rosinha, num ato de valentia, no alto dos seus 75 anos, olha para o homem e diz:

- Vai maldito! Vai embora, infeliz. Ninguém te quer aqui. Tu não mata ninguém, porque quem ameaça não faz. Ô meu Deus, obrigado por não fazer o teu filho ver esta tua baixaria. Ele não está aqui e eu vou ligar pro Sul e contar pra ele o que você ta fazendo com a mãe dele. Bandido! Sai daqui!

Maria do Carmo grita assustada:

- Osvaldo, vai embora daqui. Osvaldo, um dia eu te amei, te conheci, tivemos o nosso filho. Ele cresceu, é um homem de bem, tem família. Agora você é velho. É um velho ruim. Jesus, me salva. Osvaldo, te perdôo, mas te peço. Não me mata! Vai embora, vai pra tua bebida, vai pras tuas vagabundas. Me deixa em paz! Jesus cuida de mim. Jesus vai me ajudar ...e eu vou embora morar com o meu filho, em Porto Alegre. Jesus, Jesus, me salva....

Foi neste dramático momento em que Osvaldo, que estava sendo contido pelo seu Horácio e por Ricardo, marido de Alessandra, filha de dona Geni, conseguiu se desvencilhar dos dois homens. Com uma força descomunal, ele partiu para cima de Maria do Carmo e, com a faca apontada para ela, e com uma sacola na outra mão, pegou a mulher de tantos anos e lutas pelos cabelos. Um grito e um choro fino marcou aquele momento. Maria do Carmo achou que ia morrer ali, no meio da rua, defronte aos vizinhos de mais de duas décadas.

Num ato de heroísmo, o Malhado, aquele cão branco com pintas marrons no pelo, deu um salto. A pontaria foi certeira. O animal pegou o braço esquerdo, onde o louco do Osvaldo conduzia a faca. Osvaldo, com raiva, pegou a sacola e começou a bater no cachorro. O cachorro rusnava e também olhava firmemente para o homem que o agredia também. Foi uma luta espantosa. Ninguém esperava ver aquela cena. Nem as idosas vizinhas, nem Maria do Carmo, que perdeu um pouco de cabelo ao se desvencilhar das mãos do marido agressor e nem o restante da rua, que via o Malhado como um cachorro tranqüilo.

Osvaldo, com o braço sangrando, largou a faca no chão. Ainda tentou desferir um golpe no cachorro, mas não conseguiu. Malhado deu o golpe perfeito. Uma patrulhinha entrou na rua, com a sirene ligada, tentando afastar a multidão da cena. Osvaldo, rápido e rasteiro, saiu correndo para o lado inverso ao do carro da polícia. Saiu com a sacola um pouco rasgada no braço e com o sangue pingando. As crianças da rua saíram correndo atrás dele, jogando pedras e o xingando. Chamavam-o de bandido, de batedor de mulher, de covarde, de tudo quanto eram ofensas. Naquela hora, as crianças fizeram a catarse que toda a rua queria fazer. O negócio era jogar pedra no Osvaldo. O agressor fez sinal para um táxi que passava na rua próxima dali , embarcou no veículo e sumiu.

Maria do Carmo foi trazida para o portão de dona Geni. Todos a acolheram. Nervosa, a mulher tomou um copo de água com açúcar e o policial militar que estava na patrulhinha convidou-a a lhe acompanhar até a delegacia do bairro para prestar ocorrência. Fora uma tentativa de homicídio, seguida de ameaça. Dona Rosinha, que não quis saber de confusão, não foi a polícia. Dona Geni, os netos, Alessandra, Ricardo, e toda a vizinhança, ficaram surpresos com um gesto inesperado.

Jamais esperavam que o Malhado, aquele cachorro velho, gordo e branquinho, iria ter um ato como aquele. Assim que Maria do Carmo entrou na viatura policial, acompanhada de dona Raimunda e seu Horácio, Malhado deu um latido e também entrou na viatura policial.

Como um último ato de bravura, de heroísmo, de fibra e de virtude, o cachorro foi à frente da viatura, em uma janela, com as patas cruzadas no vidro e latindo. Malhado quis ir até a delegacia acompanhar Maria do Carmo. Ele sim quis ser testemunha e também apontar a responsabilidade criminal de Osvaldo. Todos riram. Osvaldo não voltou mais para Ramos. Para onde foi? Nem Jesus Cristo não quer saber dele. Nem nós.

O pequeno Thiago, neto de Dona Geni, resumiu o fato com uma pequena frase:

- Malhado, este você pode confiar..............

Nenhum comentário:

Postar um comentário