segunda-feira, 23 de maio de 2011

UM TIRO DERRUBA UM HERÓI

A notícia vem e vem trágica no noticiário do rádio: "Tiroteio e morte no Tuiuti. Três mortos e dez feridos em uma troca de tiros com a polícia".

Águida estava em casa, terminando de fazer uma costura. Já havia passado o café para esperar seu filho, Cícero, chegar de mais um dia de trabalho. Cícero era policial militar. Era lotado na região de Madureira, mas frequentemente era chamado para cobrir ações policiais em outras regiões da zona norte da cidade. Não eram poucas as vezes que Cícero cortava a Avenida Brasil ou a Linha Vermelha em alta velocidade. O combate ao crime no Rio de Janeiro tinha se intensificado. A ordem era deixar a cidade limpa, limpa da ação do crime organizado. Tudo para o Rio de Janeiro sediar a Copa do Mundo, a começar pela Copa das Confederações. O Rio de Janeiro tinha que estar limpo e perfeito para 2014.

Aquela notícia, transmitida pela rádio tocou no coração de Águida. Mãe experiente, viúva de policial militar, o qual não morreu em combate, mas morreu de velhice, com um infarto que o levou ao hospital e que em consequência lhe trouxe uma grave insuficiência cardíaca, a qual seu amor, Manoel, não durara por longo tempo, sabia o que era ficar com o coração em alerta a cada notícia de tiroteio ou de ação policial. Sempre soube que ser mãe de policial e esposa de policial militar não seria um destino dos mais tranquilos. Mas tinha muito medo por Cícero. Cícero era o filho caçula. Suas duas irmãs eram casadas. Nenhuma com homens de farda. Águida temia pela vida do filho, noivo de Suzana. Com casamento marcado para breve. Em suas orações, em sua conversa íntima com o Criador, pedia proteção aos passos do filho. Jovem de muita bravura, herói desde pequeno. Ao ver o pai fardado, Cícero já havia traçado, com palavras, seu caminho: ser policial militar como seu pai.

O aperto no coração da mulher velha persistia. Viúva, tinha medo que seu filho morresse nas mãos dos bandidos. Sonhava com o filho sendo alvejado em combate. Nunca queria sonhar, mas a imagem de seu filho morto em combate, tendo sua carne exposta e dilacerada na rua era algo que a atormentava. Sabendo de todo o seu temor, Águida jamais dissera ao filho para desistir do sonho de ser policial militar, e honrar a farda azul marinho, com a miniatura da bandeira do Estado do Rio de Janeiro costurada nas mangas do uniforme. Águida sentia um frio lhe percorrer a espinha. Sai do quarto e vai até a televisão. Liga e vê uma cobertura. Um helicóptero sobrevoava a região do Tuiuti e o repórter falava de mais uma tragédia cotidiana. Ali, um policial militar, um morador da área e um traficante foram alvejados e mortos na guerra entre traficantes e a Polícia Militar. O nome do soldado ferido no combate, o qual fora levado para o Hospital Salgado Filho, no Méier, também na Zona Norte, não havia ainda sido divulgado.

Águida foi até o telefone, pegou o caderninho com os números e ligou para o batalhão onde o filho era lotado. Lá, perguntou ao atendente se ele tinha informações acerca de um confronto que ocorrera entre policiais e traficantes no Tuiuti. O policial ainda não tinha informações. Não soube precisar o que acontecia.

Águida desliga o telefone e vai até a porta de casa. Alguém bate.

A mulher então recebe a notícia de um soldado. Era o soldado Vieira, amigo e colega de seu filho. Está acompanhado de outro soldado, soldado Ramos. Os dois entram na casa e pedem para conversar com a mulher.

Ambos dão a notícia que Cícero fora baleado. Que estava ferido e que havia sido levado ao Hospital Salgado Filho. Águida, nervosa, respira fundo, vai até o quarto, pega sua bolsa, pega o terço que está pendurado ao lado de sua cama, a fotografia com a imagem da Escrava Anastácia e sai. Segue acompanhada pelos policiais para o hospital, também na zona norte da cidade. No percurso, um profundo silêncio toma conta de todos que estão na viatura. O giroflex está ligado, mas a sirene não ecoa o pedido de passagem de emergência pelas avenidas. O trânsito está pesado para o horário. Não que o trânsito da zona norte carioca fôsse tão calmo. Mas naquele dia o caos parecia estar um pouco maior.

Os três chegam ao hospital, entram, se identificam na entrada de emergência. Um enfermeiro acompanha Águida até a porta do bloco cirúrgico. Seu filho, Cícero, se encontrava passando por procedimento cirúrgico. Era para extrair dois projéteis que estavam em seu corpo, além de estancar uma hemorragia interna. Foram tiros dados por fuzis. As chances de Cícero sobreviver aos ferimentos são pequenas. Os ferimentos perfuraram a aorta e Cícero corria risco de morte.

A cirurgia não terminava. Águida ligara para sua única filha que vivia no Rio de Janeiro. Alessandra chega ao hospital com Maurício, seu esposo. Águida chama Clara, sua irmã, solteira, madrinha de Cícero, que o criara e que fora alguém importante em sua vida, desde a morte de seu marido, Manoel.

A cirurgia chega ao final. Os médicos saem do bloco cirúrgico e, no final do corredor, chama os familiares de Cícero dos Santos. Doutor Aguiar, cirurgião experiente, da emergência, especialista em atender a feridos por arma de fogo e arma branca, se aproxima da família e diz: sinto informar, mas Cícero faleceu durante a cirurgia. Meus sentimentos a todos. Fizemos o que fora possível, mas não conseguimos estancar a hemorragia. Ele teve uma parada cardiorrespiratória e não conseguimos o reanimar. Pergunto a vocês se Cícero era doador de órgãos. Vocês concordam com a doação?

Águida se abraça em Alessandra e ali também Clara se abraça a Maurício e todos começam a chorar. Os colegas de farda, Vieira e Ramos, também choram. Choram copiosamente. Choram com dor e revolta a morte do amigo e colega, tão jovem e que se fora em combate. Suzana, a noiva, também chega ao hospital. Se abraça a Águida e chora copiosamente. A jovem desmaia e é socorrida. Tragicamente ficara viúva, às vésperas de casar. Viúva e com o filho do casal no ventre, pois estava com três meses de gravidez, fruto do amor e da paixão que tinha por Cícero.

Os familiares autorizam a doação de órgãos e os médicos decidem manter as funções vitais vivas por mais seis horas, até que realmente possam fazer a retirada dos órgãos do policial militar.

Morto em combate, mais um herói que entrava para as estatísticas da violência no Rio de Janeiro. Um tiro, certeiro na aorta, derrubou um herói. Desde pequeno, Cícero queria ser herói. Sonhava em ser herói. Primeiro, como todo o menino, ser bombeiro. Depois, policial. E na Polícia Militar o jovem começara a realizar o seu desejo, seguindo os passos de seu pai. Manoel se reformou capitão, morreu doente. Mas deu sua vida e sua bravura também no combate e na defesa da criminalidade, em favor ao Rio de Janeiro. Cidade a qual amava. Chegado da Paraíba, de Campina Grande. Fora no Rio de Janeiro que Manoel casou com Águida, carioca do interior do estado, com quem tivera seus três filhos: Alessandra, Aline e Cícero. Fora no Rio de Janeiro, em Madureira, onde vivia, que tivera sua casa, que tivera seu lar e o mesmo batalhão, onde serviu até se reformar. Foi ali, com casualidade ou destino que Cícero também servira.

Dois tiros de fuzil pararam a carreira promissora de Cícero dos Santos. Seu corpo fora levado a Igreja Evangélica da Paz, onde a família congregara. Depois, para o Jardim da Saudade, em Sulacap, onde também fora enterrado. Sepultado com honras militares.

Na despedida, Águida, mãe, mulher, viúva, órfã do varão que lhe sobrara, colocara sobre o caixão uma foto de Manoel, pai do jovem, homem o qual amou e respeitou durante toda uma vida. E que se separara pela viuvez a qual lhe atingira. Águida coloca a foto do marido sobre o caixão do filho e começa a cantar. Começa a cantar uma música a qual seu filho gostava muito. Cantara uma canção cristã, uma música a qual falara de vida eterna, a qual falara de uma morada eterna. Uma morada junto a Jesus, o qual está sentado a direita de Deus, em um trono sagrado, junto ao paraíso.

Alessandra, seu marido Maurício, Suzana e Clara jogaram flores no túmulo. Aline, irmã de Cícero não conseguiu chegar a tempo para o enterro do irmão. Morava em Londres e soube da morte por um primo de Cícero. Estaria vindo ao Brasil em breve, mas de lá ficara triste e demolida emocionalmente com a morte do irmão que tanto amara.

O bandido que matou Cícero também morreu na troca de tiros. Foi alvejado por policiais.

Cícero se foi. Partiu jovem, morreu aos 29 anos. Às vésperas de seu casamento, às vésperas de ser pai de seu primeiro rebento. Tomba um filho bom, bom noivo, bom irmão, bom policial, bom homem de bem. Tomba mais um brasileiro que deu a sua vida para combater a violência urbana.

Um tiro derruba um herói.

Nenhum comentário:

Postar um comentário